O que foi o desastre da balsa Sewol e a lista negra de artistas

O desastre da Balsa de Sewol, a lista negra de artistas e o início do fim do governo Park

Efeito BTS
12 min readDec 13, 2020

Na manhã do dia 16 de Abril de 2014, a balsa Sewol que ia de Incheon para a Ilha de Jeju, levava 476 pessoas a bordo, sendo 443 passageiros dos quais 325 eram estudantes da escola Danwon; de acordo com os dados do Sistema de Identificação Automático, a balsa fez uma curva acentuada perto da Ilha Jindo, onde perdeu controle e virou.

O capitão e a equipe que trabalhava a bordo foram os primeiros a abandonar a balsa, após repetidamente pedir para o resto da população ficar onde estava e dentro de seus quartos. Nas duas horas seguintes, 172 passageiros e equipe foram resgatados, mas muitos estavam presos dentro da balsa que afundava. No total, 304 passageiros morreram, sendo desses 250 estudantes do ensino médio.

O fotógrafo da agência Reuters Kim Hong-Ji, que cobriu o acidente, manteve contato com as famílias das vítimas, visitando suas casas e fotografando os quartos das vítimas.

Apesar da comoção internacional, ainda não houve uma investigação que explique o que fez o Sewol afundar ou por que os passageiros não foram resgatados de imediato. A tragédia traumatizou os coreanos que assistiam às notícias sobre o desastre, impotentes. Isso se tornou um ponto de virada na história sul-coreana, visto que a população começou a questionar questões de comunidade, educação, governo, lei e violência.

Em 2017, os coreanos foram às ruas e fizeram o impeachment da então presidente sul-coreana Park Geun-hye. Mesmo com o apoio dos cidadãos, a verdade sobre o desastre e por que o governo de Park falhou em resgatar os estudantes permanece desconhecida.

Tais condições político-sociais levaram os artistas na Coréia do Sul a uma diáspora para lamentar as vítimas e expressar seus pensamentos através da arte. Esses trabalhos são vistos como memoriais vivos, pois prestam homenagem às vítimas (ou sua ausência), a busca pelos seus corpos, e as famílias e amigos que lembram deles. Essas ações ajudaram a formar uma consciência, uma percepção crítica sobre memória e luto. Isso também indica como uma performance pode representar algo que desafia a explicação, pois as razões para o quê aconteceu não estão disponíveis.

Os artistas coreanos que criaram trabalhos para lamentar a tragédia de Sewol podem ser vistos como ativistas, pois foram colocados em uma lista negra por criticarem a resposta do governo Park em relação ao naufrágio. A Guarda Costeira Coreana, O Ministério dos Oceanos e Pescas e O Ministério da Segurança Pública falharam em coordenar uma missão de resgate efetiva que poderia ter salvado a vida dos passageiros aguardando em suas cabines. O chefe da Guarda Costeira também mentiu, dizendo que 160 mergulhadores estavam tentando recuperar os corpos, quando na verdade eles eram apenas 8.

Após o naufrágio do Sewol, Park prometeu que ela e seu governo iriam conduzir uma investigação completa. A Assembleia Nacional Sul Coreana passou o Ato Especial para a Investigação da Verdade sobre o Desastre da Balsa Sewol em 16 de Abril e Construindo uma Sociedade Segura (‘Ato Especial’) em 07 de Novembro de 2014. Foi promulgado em 19 de Novembro de 2014 e colocado em efeito em 1 de Janeiro de 2015.

Uma petição nacional foi essencial para colocar o Ato Especial em efeito. Contudo, ao invés de tentar identificar a causa do acidente e por que os estudantes não foram resgatados, o governo Park se recusou a cooperar com os sobreviventes e familiares das vítimas e atrapalharam os esforços do Comitê de Investigação Especial da Tragédia da Balsa Sewol (SIC). Para completar, o governo Park culpou as famílias das vítimas de polarizarem a opinião pública, e acusaram o SIC de serem esquerdistas.

Logo depois da tragédia, o Comando de Segurança de Defesa da Coréia do Sul (DSC) caracterizou as famílias das vítimas como jongbuk — pessoas que simpatizam com a ideologia norte-coreana. No dia 21 de Abril de 2014, seis dias após o acidente, o DSC escreveu um relatório chamado “Plano de Prevenção de Espionagem”. O relatório afirmava que o DSC iria confirmar se havia movimentos jongbuk promovendo atividades antigovernamentais entre as famílias das vítimas, e prometeu bloqueá-los.

De acordo com o relatório de 29 de Maio de 2014 do DSC, o Comitê para as Vítimas do Sewol, uma organização que apoiava as famílias do Sewol, foi listada como forças jongbuk. Assim, o DSC via as famílias Sewol e seus apoiadores como simpatizantes da Coréia do Norte. A razão não é clara, mas pode-se assumir que o governo Park temia a efetivação do castigo por quão mal o governo lidou com a tragédia, articulada pelas famílias Sewol e seus apoiadores.

Durante o período de onze meses da investigação, o governo Park e os partidos conservadores fizeram de tudo para dificultar para o SIC fazer o seu trabalho. Primeiro, o governo restringiu a autoridade do SIC por meio do Decreto de Execução da Lei Especial. Em 27 de Março de 2015, o Ministério dos Oceanos e Pescas anunciou o Decreto de Execução da Lei Especial sem qualquer explicação.

Se o Decreto de Execução fosse colocado em vigor, os funcionários do governo despachados assumiriam o controle total do SIC e reduziriam a autoridade dos membros do comitê. O SIC exigiu que o Ministério rescindisse o Decreto de Execução, argumentando que violava o propósito da legislação do Ato Especial, interferia na investigação do SIC e até prejudicava a independência do SIC. No entanto, em 11 de maio de 2015, o governo assumiu um versão ligeiramente revisada do Decreto de Execução.

O orçamento do SIC também limitou o que o SIC poderia fazer. Em 4 de agosto de 2015, o Ministério da Economia e Finanças alocou 8,9 bilhões de won em vez dos 16 bilhões de won inicialmente solicitados. O orçamento destinava-se às atividades de investigação do SIC, como perícia digital e investigação científica; com um orçamento tão reduzido, seria difícil conduzir uma investigação científica abrangente sobre a tragédia da balsa de Sewol.

Mesmo depois que o SIC foi estabelecido, a investigação foi paralisada porque o governo não cooperou com a coleta de informações do SIC. A Casa Azul e o Serviço Nacional de Inteligência não enviaram nenhum dado sobre as atividades de Park no dia do incidente. Nem o tribunal, a acusação ou o Conselho de Auditoria e Inspeção enviaram quaisquer dados ao SIC. E embora o SIC tenha descoberto um milhão de gravações de comunicação de frequência da Guarda Costeira, apenas 7.100 foram entregues ao SIC. O Ministério dos Oceanos e Pescas relutou muito em fornecer dados sobre o salvamento da balsa e, eventualmente, forneceu menos da metade dos dados solicitados pelo SIC.

Assim, embora o SIC tenha sido criado por lei e tivesse autoridade legal para investigar, não foi capaz de exercer essa autoridade porque o governo interferiu em suas atividades. Sob o pretexto de aprovar o Ato Especial para ajudar as famílias das vítimas, o governo de Park tentou usar o Ato Especial e outros sistemas institucionais e legais para impedir os esforços do SIC para descobrir a verdade. Quando o povo coreano marchou em protesto, a administração de Park fez a polícia reprimir a multidão e até prender as famílias enlutadas.

Quando os artistas coreanos criaram obras para comemorar a tragédia e responsabilizar o governo, o governo Park negou-lhes subsídios e financiamento. Em outubro de 2014, quando o Festival Internacional de Cinema de Busan exibiu o documentário The Truth Shall Not Sink with Sewol (2014), o diretor do festival, Lee Yong-gwan, foi convidado a renunciar. Cho Yun-seon, ex-ministro do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo, pediu ao partido conservador no poder que denunciasse o documentário. Cho também ordenou que todos os ingressos fossem comprados antes da exibição e que as críticas negativas do documentário fossem postadas no site a Internet.

Suspeitas sobre a vigilância governamental e a censura das artes e cultura vieram à tona quando o crítico de teatro Kim Mi-do relatou que a peça All Soldiers Are Unfortunate de Park Geun-hyeong foi inicialmente selecionada para financiamento pelo Arts Council Korea, mas os membros do Conselho convocaram os membros do júri e exigiram que os fundos fossem rescindidos.

Além disso, em outubro de 2015, o Arts Council Korea interrompeu uma apresentação no Seoul Performing Arts Festival porque referências a uma viagem escolar e à popular marca de roupas North Face evocaram a tragédia Sewol Ferry. Em outubro de 2016, foi revelado que a administração de Park censurou artistas proeminentes e colocou 9.473 artistas na lista negra, incluindo aqueles que assinaram petições para revelar a verdade sobre a tragédia da balsa de Sewol. De acordo com a lista, 594 artistas que assinaram a petição para abolir o Decreto de Execução da Lei Especial de Sewol e 754 que participaram da Declaração do Estado de Assuntos da Coreia foram colocados na lista negra.

Devido às condições sociopolíticas em torno da tragédia da balsa de Sewol, o próprio ato de encenar a tragédia destaca o uso de estratégias performativas pelos artistas contra o regime. Assim, obras que lembram e lamentam as vítimas, e se solidarizam com as famílias das vítimas podem ser vistas como performances ativistas.

Porém, os artistas que se solidarizavam com as famílias das vítimas não foram os primeiros e nem os últimos artistas a serem colocados em uma lista negra pelo governo Park.

O artista sul-coreano Hong Sung-dam em 2014, com sua pintura representando a Presidente Park Geun-hye como um espantalho. Sr. Hong é um dos milhares de artistas na lista negra do governo da Sra. Park. Crédito: Jean Chung para o The New York Times

Quando o artista sul-coreano Hong Sung-dam fez uma pintura que retratava a então presidente Park Geun-hye como um espantalho manipulado por forças malignas, incluindo seu pai ditador, seus assessores sênior discutiram como “punir” Hong, de acordo com um diário que um deles manteve.

Logo após o término da pintura em Agosto de 2014, a retaliação começou como planejado no diário do assessor, que veio à tona em Novembro de 2016 com a investigação do escândalo de corrupção que levou processo de impeachment da Sra. Park.

Primeiro, um grupo cívico pró-governo processou o Sr. Hong sob a acusação de difamar a Sra. Park. Então, seu trabalho foi excluído da Bienal de Gwangju, o festival internacional de artes mais conhecido da Coreia do Sul, um ato que o prefeito de Gwangju admitiu mais tarde ter sido devido à pressão do governo.

A retaliação não parou por aí, disse Hong. “Dezenas de ativistas conservadores apareceram na frente do meu apartamento como um esquadrão de idiotas, sacudindo minhas fotos e me chamando de ‘pintor comunista’”, disse ele. “Recebi ameaças de morte por telefone.”

No final das contas, Hong foi um dos milhares de artistas que supostamente foram incluídos na lista negra do governo de Park, que sofreu impeachment sob a acusação de corrupção e abuso de poder. A lista negra é apenas mais um elemento no caso que enfureceu o público e gerou uma introspecção nacional sobre a jovem democracia sul-coreana e seu passado autoritário.

Três dos ex-assessores de Park, incluindo um de seus ex-ministros da cultura, Kim Jong-deok, foram presos sob a acusação de colocar figuras culturais na lista negra, considerá-las hostis e impedi-las de participar de programas de apoio controlados pelo governo.

Até 2017, duas versões da lista negra foram relatadas pela mídia, citando fontes anônimas. As autoridades, incluindo o promotor especial no caso, Park Young-soo, confirmaram a existência da lista negra, mas não a divulgaram.

Uma versão de 2015 da lista incluía mais de 9.000 pessoas, de acordo com reportagens da imprensa. A lista continha alguns dos cineastas, atores e escritores mais queridos da Coreia do Sul, incluindo o diretor de “Oldboy”, Park Chan-wook, e o ator de “Snowpiercer” Song Kang-ho.

Oficialmente, a Sra. Park fez da promoção de filmes e outros produtos culturais uma de suas principais prioridades. Mas, secretamente, seu governo rejeitou os artistas, revivendo uma prática de ditadores militares do passado como seu pai, Park Chung-hee, e com isso “minou seriamente a liberdade de pensamento e expressão”, disse a promotoria especial.

As revelações sobre a lista negra cultural adicionaram uma nova camada de notoriedade ao escândalo em torno de Park, e os promotores planejaram usar a lista para ajudar a fortalecer as acusações de impeachment contra ela.

Coletes salva-vidas representando as vítimas do desastre da balsa Sewol de 2014 em um protesto, pedindo pela renúncia da presidente Park em Seoul, Coreia do Sul, em Janeiro de 2017. Crédito: Kim Hong-Ji/Reuters

Quando a Assembleia Nacional votou pelo impeachment de Park, a acusou de conspirar com seu confidente de longa data, Choi Soon-sil, para solicitar suborno de empresas e reprimir funcionários e jornalistas que não cooperassem.

Tanto a Sra. Park quanto o Sr. Kim, seu ex-chefe de gabinete, negaram envolvimento na lista negra de artistas. No entanto, outro ex-ministro da cultura de Park, Yoo Jin-ryong, disse que a lista foi ditada pelo gabinete da presidente.

Para muitos sul-coreanos, as notícias da lista negra de artistas reacenderam as memórias do passado ditatorial do país.

O pai de Park, que governou a Coreia do Sul de 1961 a 1979, censurou jornais e prendeu escritores e editores dissidentes. Chun Doo-hwan, um ditador militar durante os anos 1980, baniu um comediante da TV depois que as pessoas compararam as aparências dos dois homens. (Ambos eram carecas.)

Os governos subsequentes foram acusados ​​de favorecer acadêmicos pró-governo e grupos cívicos ao distribuir projetos de pesquisa e subsídios.

Sob o predecessor conservador de Park, Lee Myung-bak, algumas celebridades e jornalistas considerados progressistas foram impedidos de participar das emissoras controladas pelo Estado.

Mas as últimas revelações marcaram a primeira vez que a existência de uma extensa lista negra do governo foi revelada desde que a Coreia do Sul se mudou para a democracia no final dos anos 1980.

“É uma honra estar na lista”, disse Ko Un, um dos poetas mais conhecidos da Coreia do Sul, à emissora SBS no final de 2016, quando publicou outra versão da lista. “Isso mostra como o governo é nojento.”

No governo de Park, cujo estilo de liderança é frequentemente comparado ao de seu pai, rumores de uma lista negra têm circulado há anos.

Os rumores se intensificaram depois que dois diretores teatrais premiados foram misteriosamente expulsos dos programas de subsídios do governo: um fez campanha para o principal oponente de Park na eleição de 2012; outro havia produzido uma peça parodiando a sra. Park e seu pai.

Sr. Yoo, o ex-ministro da cultura, disse que Kim, chefe de gabinete de Park na época, começou a ordenar ao ministério da cultura que colocasse certos artistas na lista negra em 2013.

Yoo disse que uma das primeiras versões da lista negra que viu em junho de 2014 incluía centenas de artistas. Pouco antes de ser substituído, um mês depois, Yoo disse que se encontrou com Park para alertar contra a lista. (Sra. Park negou ter sido avisada.)

Em 2015, a lista havia inflado para incluir mais de 9.000 artistas visuais, músicos, atores, diretores de cinema e musicais e escritores considerados críticos da Sra. Park, especialmente aqueles que falavam sobre a sua abordagem ao desastre da balsa ou que eram suspeitos de apoiar seus rivais, de acordo com o jornal Hankook Ilbo, que publicou o que alegou ser a lista em outubro de 2016.

O escritório de Park perseguiu zelosamente seus oponentes após o desastre da balsa, de acordo com o diário de Kim Young-han, a ex-assessora presidencial que detalhou a retaliação contra Hong. A tragédia da balsa é um tema central na pintura de Hong.

Durante uma reunião de assessores presidenciais em 2014, o Sr. Kim, chefe de gabinete da Sra. Park na época, pediu uma “resposta combativa aos esquerdistas nos círculos culturais e artísticos” e ordenou que os assessores “descobrissem suas redes”, de acordo com o diário. Ele comparou professores e jornalistas progressistas “a cogumelos venenosos”. O diário também registrou instruções para punir artistas que satirizaram Park, conduzir uma “verificação de lealdade” de altos funcionários do governo, “intimidar” tribunais de justiça e “induzir” acadêmicos a escrever colunas em jornais pró-governo.

“Faça-os ficar com medo de desafiar o presidente”, disse Kim, citado em um diário de 4 de julho de 2014.

Ele negou ter dado tal ordem e disse que o diário não registrava fielmente o que foi realmente discutido durante as reuniões dos assessores.

A autora do diário, Kim Young-han, morreu em agosto de 2016, mas os promotores disseram que acharam isso útil para construir seu caso contra Park.

Hong, o pintor, disse que, para os artistas pobres, ficar sem viagens e outros programas de apoio do governo pode ser devastador.

Em 2015, o Sr. Hong foi convidado a mostrar sua pintura em um festival de artes de Berlim. Mas nenhuma empresa de logística doméstica transportaria a obra por medo de retaliação do governo. O Sr. Hong teve que viajar sozinho e repintar apressadamente uma cópia do original em Berlim.

“Fico estremecido porque Park Geun-hye e seus comparsas tentaram domar os artistas retendo uma ninharia do apoio do governo enquanto eles próprios embolsam milhões”, disse Hong. “Eles mostraram como o poder político pode ser depravado.”

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